Por que os pejotizados vêm crescendo tanto? Uma comparação entre os por conta própria e os empregados com carteira

Nelson Marconi – Professor adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV EAESP) e coordenador do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimento

Uma das características marcantes do mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos, além da precarização, é a chamada pejotização. A permanecer esse processo, o emprego como conhecemos, com vínculo formal apoiado na relação contratual entre empregador e empregado, será residual a longo prazo. Em parte, essa tendência reflete uma crença naquilo que intitulo prosperidade individualista, muito difundida nas mídias sociais; mas há também motivações de ordem econômica e jurídica que explicam esse cenário e serão discutidas neste texto.

O ponto de partida para compreender esse movimento é a comparação entre as remunerações praticadas nos diversos setores, desagregando as segundo as chamadas condições na ocupação, que podem representar vínculos formais, informais ou prestação de serviços. Para realizar essa análise, foi calculado o salário médio, ajustado pelas horas trabalhadas na semana, para cada setor/condição na ocupação em 2024, e posteriormente dividido pelo salário médio agregado da economia, gerando assim o que chamo de remuneração relativa (que é um índice cujo valor para a média da economia é igual a
1). Os dados se restringem ao setor privado, pois é nele que se concentra a dinâmica de pejotização.

O primeiro aspecto a ressaltar, a partir dos dados incluídos na tabela 1, é o comportamento distinto dos
salários nos diversos setores. Conforme discutido em oportunidades anteriores, alguns deles que demandam habilidades mais sofisticadas, como serviços modernos, a indústria de média e alta tecnologia, as atividades extrativas e a infraestrutura, praticam remunerações superiores à média. Mas chama também a atenção o comportamento da remuneração por condição na ocupação. A média praticada para os por conta própria com CNPJ é superior à dos empregados com carteira assinada. Essa diferença remuneratória em favor dos pejotizados explica muito da tendência atual do mercado de trabalho.

Já a remuneração dos por conta própria sem CNPJ e dos empregados sem carteira assinada é semelhante entre si e inferior à dos pejotizados e com carteira. Quando analisamos de
modo mais desagregado este grupo, em aproximadamente metade dos setores os por conta própria não pejotizados recebem remunerações inferiores às dos empregados sem carteira assinada. Assim, o vínculo formal permanece sendo uma alternativa interessante, em diversas atividades, para o trabalhador que atua com vínculos mais precários.

Voltando à discussão sobre pejotizados e empregados com carteira, quais fatores podem explicar esse cenário? Um deles reside possivelmente em uma eventual diferença entre as características das habilidades dos trabalhadores destes dois grupos no mesmo setor. De fato, é nítido que, na maioria dos setores, a parcela dos que possuem escolaridade de nível superior é maior entre os pejotizados que entre os empregados com carteira, conforme pode se observar no gráfico 1 (cada ponto no gráfico corresponde a um setor, no qual se compara a participação de trabalhadores com escolaridade de nível superior ou maior, entre pejotizados e empregados com carteira). Logo, há uma correlação relevante entre nível de escolaridade, pejotização e o salário relativo observado.

Com o intuito de confirmar a relevância do nível de escolaridade para explicar as diferenças salariais entre as distintas condições na ocupação, estimei o rendimento médio apenas para trabalhadores que possuem escolaridade de nível superior.

Se esse fator for determinante, mais que a própria condição na ocupação, espera-se que a diferença entre os salários relativos nos diversos setores para pejotizados e empregados com carteira seja mínima. Porém, o gráfico 2 mostra um resultado distinto. Em diversos setores, a remuneração de pejotizados é consideravelmente superior à dos trabalhadores com carteira (cada ponto no gráfico corresponde a um setor, no qual se compara a remuneração relativa entre pejotizados e empregados com carteira).

Resumindo os achados, os pejotizados possuem, em média, um nível salarial e de escolaridade superior aos dos empregados com carteira, que por sua vez é superior aos dos por conta própria não pejotizados. Para reforçar o argumento, os dados mostram que, em 2024, 43% dos trabalhadores ocupados no país atuavam como empregados com carteira assinada e 7% como pejotizados. Porém, o percentual de pessoas com escolaridade de nível superior entre os pejotizados é maior – 34%, enquanto entre os empregados com carteira assinada este percentual atinge 23%. Portanto, o nível de escolaridade é importante para explicar as diferenças salariais entre os dois grupos, mas também observamos que, mesmo entre os mais escolarizados, há diferenças remuneratórias entre eles.

Duas perguntas se seguem, então. Primeiramente, o que explica a maior participação de pessoas com escolaridade de nível superior entre os pejotizados? Podemos sugerir algumas hipóteses. A primeira está mais associada à oferta de força de trabalho, ou seja, à preferência pela autonomia e liberdade de jornada de trabalho, que não resulta em precarização em virtude do nível de escolaridade deste grupo. A segunda causa, que afeta tanto a oferta como a demanda, seria a reforma trabalhista, que possibilitou a terceirização de atividades que demandam qualificações mais elevadas. Esse movimento foi relevante após 2016 – ano prévio à reforma –, conforme se observa no gráfico 3. Nele se demonstra, para cada setor e condição na ocupação, a diferença entre a participação de trabalhadores com escolaridade de nível superior em 2016 e 2024. Houve crescimento em quase todas as situações analisadas, mas em alguns grupos de serviços e na manufatura de média e alta tecnologia, bem como nos setores de infraestrutura, essa variação foi expressiva entre os por conta própria.

Resta uma questão: por que trabalhadores qualificados recebem remunerações superiores como pejotizados que seus pares como celetistas no mesmo setor? A hipótese, neste caso, está associada à demanda por força de trabalho e à estrutura de custos trabalhistas. É provável que as empresas optem por contratar trabalhadores que gerarão encargos trabalhistas menores e repassem uma parte desse “bônus” para as remunerações praticadas. É um fator de ordem econômica, facilitado pelo entendimento abrangente de parcela do Judiciário sobre o conceito de terceirização. Há um claro trade-off, nesta prática, entre remuneração e acesso a direitos sociais, pelo lado do trabalhador, e redução de custos versus rotatividade, menor dedicação e conhecimento da organização, sob a ótica das empresas.

Se não desejarmos que a sociedade brasileira enfrente o aprofundamento desses trade-offs (ainda mais com o desenvolvimento da inteligência artificial, que reforçará a flexibilização dos regimes de trabalho), o atual fosso que existe entre a tributação sobre pejotizados (via MEIs e Simples) e o trabalho formal tem que ser reduzido. O próprio governo vem sofrendo fortes perdas em termos arrecadatórios (vide trabalho que escrevi com Marco Brancher, citado a seguir). Uma negociação que possibilite definir um patamar intermediário de tributação, para aproximar esses dois segmentos do mercado de trabalho, bem como uma clara definição jurídica de atividades passíveis de terceirização (que hoje vem sendo praticada para atividades de prestação de serviço contínuo que implicam relação de subordinação a chefias), seriam fundamentais para evitar o esfacelamento de uma estrutura de relações do trabalho mais solidária, construída a tanto custo ao longo de nossa história recente.

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