Soberania | Daniel S. Kosinski
(Publicado na edição #001, junho de 2023, p. 27)
O Trabalhismo é a doutrina política de bases sociais genuinamente brasileiras responsável, ao longo da nossa história, pela construção do que há de mais fundamental das bases institucionais e materiais da nossa soberania nacional.
Com Getúlio Vargas, ao longo dos seus diferentes períodos de governo e para ficarmos apenas no que a memória imediata nos traz de mais essencial, podemos citar, no campo institucional, a racionalização e a profissionalização da administração pública; a criação da legislação trabalhista, consagrada na CLT; as instituições da SUMOC, embrião do banco central brasileiro, do BNDE(S), nosso banco nacional de fomento ao desenvolvimento, da assessoria econômica e dos grupos executivos, além de diversos órgãos e agências de planejamento da industrialização. Quanto às bases materiais, Getúlio nos legou a Vale do Rio Doce e a CSN, fundamentos da indústria metal-mecânica; a Petrobrás, base da soberania energética; elaborou o projeto de criação da Eletrobras e deu nossos primeiros passos na energia nuclear, entre muitas outras iniciativas.
Posteriormente, com Jango, o Trabalhismo já consolidado empunhou a bandeira das “Reformas de Base” — até hoje o mais completo e corajoso plano concreto de emancipação do Brasil e do povo brasileiro. Com Brizola, o Trabalhismo promoveu no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro as transformações estruturais mais profundas da história da educação popular brasileira, realizando investimentos maciços visando tornar o povo brasileiro mais saudável, mais produtivo, mais consciente da sua condição e dos seus direitos — em suma, um povo de fato soberano, capaz de ser construtor e dono do seu próprio destino.
Além de líderes dessa estatura, o Trabalhismo teve ainda ideólogos do porte de Alberto Pasqualini, Guerreiro Ramos e Darcy Ribeiro, organizadores da sua doutrina e brilhantes combatentes pela causa da nossa soberania nacional. Não por acaso, todos esses personagens, assim como o Trabalhismo enquanto ideário e projeto político, foram visceralmente combatidos por todos aqueles, no Brasil e no exterior, interessados em manter nosso país e nosso povo na sua condição histórica de subserviência e dependência.
Em agosto de 2018, publiquei no Jornal do Brasil um artigo intitulado “É preciso recuperar a ideia de Brasil”. Nele, discutia a progressiva destruição das bases da soberania brasileira nas últimas décadas, alcançando até mesmo a desmoralização da própria ideia da nacionalidade. Na ocasião, expressei o temor de que o então candidato Jair Bolsonaro, prócer máximo de tudo o que era contrário ao legado e ao projeto do Trabalhismo, fosse eleito presidente da República. Conforme sabemos, infelizmente, foi exatamente o que aconteceu.
Assim, vimos nos últimos anos mais uma extensa série de profundos ataques à soberania brasileira como a enorme difusão da posse de armas de fogo, agravando ainda mais a terrível crise de segurança pública e fomentando o avanço da “milicianização” do nosso território; e a aprovação da “independência” do Banco Central, usurpando dos governos eleitos o comando indispensável sobre a política monetária nacional — sem falar em crimes de toda sorte como as omissões e inações deliberadas durante a pandemia.
Esse desastre produziu, na eleição de outubro passado, um novo governo há pouco empossado, dando a Lula seu terceiro mandato. Em que pese uma melhora significativa e muito bem-vinda no ambiente político, o que vimos nesses três primeiros meses é um governo que carece ou de projeto ou dos meios para recuperar a indispensável soberania nacional.
Na “querela dos juros” do crédito consignado, arbitra contra os interesses da população endividada em favor dos interesses do sistema financeiro. Na questão central da administração fazendária do país, de um lado, se compromete com o “mercado” a buscar deficit zero nas contas públicas em 2024; por outro, se confessa imobilizado frente ao banco central cuja “independência”, ainda durante a campanha eleitoral, Lula declarou “aceitar”. No Congresso Nacional, cuja composição atual tem tudo para ser a mais fisiológica e parasitária já vista, sua base parlamentar parece, à primeira vista, absolutamente frágil e insuficiente para aprovar quaisquer mudanças estruturais.
Como reverter esse estado de coisas e recuperar a nossa soberania enquanto ainda há tempo? Sem dúvidas, essa é a tarefa mais difícil da conjuntura histórica em que vivemos, mas também a mais fundamental. Partidários e herdeiros do pensamento, das tradições e das realizações do Trabalhismo, temos como missão histórica engendrar todos os nossos esforços com vistas a encontrar os meios para tal.
Para isso, temos já em mãos uma ideia-força com raízes profundas na nossa história, a do “Projeto Nacional de Desenvolvimento”, em cujo entorno devemos fortalecer o Trabalhismo enquanto corrente ideológica e proposta de reconstrução do Brasil. Da mesma forma, cabe a nós trabalhistas atuarmos diretamente na gestão pública nos espaços que se mostrarem acessíveis, submetendo nossas ideias e programas aos rigorosos testes da complexa realidade social e política do nosso país, dos nossos estados e municípios.
Assim sendo, saúdo nossos colegas trabalhistas pela excepcional iniciativa de criação da revista Embaúba — Cultura Política. Mais que um espaço de debates e trocas de ideias, que ela possa também servir como um marco fundamental na missão que temos à nossa frente.
Daniel S. Kosinski é militante do PDT e professor de História do Pensamento Econômico na Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. É também autor de três livros incluindo “O Governo JK e as Raízes Getulistas da Orientação do Capitalismo no Brasil” (2015).