Soberania | Leo Lupi
(Publicado na edição #001, junho de 2023, p. 26)
Há 100 anos, quando Rufino, Caetano e Paulo Benjamin de Oliveira fundaram o bloco Conjunto Oswaldo Cruz, no subúrbio do Rio, não imaginavam, talvez, quão longe seu sonho poderia chegar. O bloco deu origem à escola de samba Portela, a primeira a completar um século de existência, em 11 de abril de 2023. Paulo, lustrador de móveis, virou o Paulo da Portela, reverenciado até hoje como o grande timoneiro da agremiação. Em 1935, ano do primeiro campeonato da escola, o nome do enredo profetizava: O samba dominando o mundo. E não é que estavam certos? O carnaval do Rio de Janeiro tornou-se não apenas a maior manifestação cultural do país, mas também um símbolo da identidade brasileira para todo o planeta.
O samba — das rodas em cada esquina do Rio aos grandes desfiles da Sapucaí — segue sendo o mais nacional dos ritmos, herdeiro da ancestralidade negra e cartão de visitas do país para qualquer estrangeiro. Ora marginalizado pelo Estado, ora próximo do poder, o samba é resistência — sobreviveu às transformações, tentativas de censura e de silenciamento. O carnaval moderno, do qual a Portela é matriarca, é exemplo da capacidade das escolas de samba de se adaptarem, se atualizarem e, acima de tudo, de preservarem sua essência, umbilicalmente ligada aos terreiros e à fé afro-brasileira.
O governador Leonel Brizola compreendeu a importância dos desfiles enquanto manifestação cultural e foi o responsável, ao lado de Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, pela construção do Sambódromo — uma estrutura fixa para o carnaval na Rua Marquês de Sapucaí e também um grande Ciep, com capacidade para 10 mil alunos. Afinal, educação e cultura devem andar juntas. Há de se lamentar que os governantes que o sucederam não tenham pensado da mesma forma. O projeto dos Cieps foi abandonado e, no caso do Sambódromo, não há mais salas de aula funcionando por lá. O local segue como palco dos desfiles das escolas de samba, mas é subaproveitado em sua enorme capacidade de atender nossas crianças e promover educação o ano inteiro, como sonhavam Brizola e Darcy.
O projeto ambicioso dos líderes trabalhistas contrasta com a ignorância da maior parte dos políticos fluminenses. Recentemente, Marcelo Crivella, prefeito do Rio entre 2017 e 2020, decidiu não só deixar de investir no carnaval da cidade como também promover um verdadeiro ataque ao samba e à cultura afro-brasileira. Seu grupo político, ligado à Igreja Universal, é conhecido por utilizar o fundamentalismo religioso como trampolim para o poder.
Frente ao desconhecimento e à discriminação, é fundamental transmitir a importância do samba para as novas gerações. Cultura e educação podem e devem andar de mãos dadas. Por que não utilizar sambas-enredo para ensinar história e cultura afro-brasileiras nas salas de aula, como determina a Lei 10.639/03? Muito pode ser ensinado através das músicas e histórias contadas pelas agremiações — um universo vasto que envolve religiões de matriz africana, obras literárias, História do Brasil, temáticas indígenas etc.
As escolas de samba devem ser reconhecidas não apenas em seu esplendor de megaevento, mas também em seu valor socioeducacional. Dos primeiros desfiles oficiais, organizados na Era Vargas, até o carnaval moderno, na Passarela Professor Darcy Ribeiro, foram décadas de resistência e conquistas. A Portela, primeira centenária, é prova inconteste da força do samba. A agremiação do subúrbio do Rio, campeã em 22 carnavais, hoje possui até representações em outros países, como o Consulado da Portela no Japão. A profecia do enredo de 1935 se cumpriu. Que o samba siga dominando o mundo, empunhando a bandeira do Brasil e da nossa gente.
Leo Lupi é graduado em Jornalismo pela UFRJ e vice-presidente da FLB-AP/RJ.