Soberania | Esley Rodrigues
(Publicado na edição #001, p. 30)
O conceito de soberania nasceu dos tratados que deram fim à Guerra dos Trinta Anos. Com a Paz de Vestfália, as coroas europeias passaram a respeitar a territorialidade umas das outras, ensejando o surgimento de delimitações fronteiriças por acidentes capitais e pela capacidade de exercer sua força e impor suas leis em determinado território, seja através de seu corpo administrativo, seja através da força coercitiva de seus exércitos.
Passados quase quatro séculos, o conceito de soberania vem sendo destruído aos poucos, em detrimento da iniciativa de se proteger civis frente a crimes perpetrados contra seus direitos fundamentais, tanto pelos Estados de quem são súditos, quanto por grupos que, apinhando-se do poder de determinado território, decidem por realizar limpezas étnicas, genocídios ou outros crimes.
Essa relativização do conceito de soberania vem evoluindo desde os acontecimentos em Ruanda, Bósnia e Somália no pós-Guerra Fria. Os genocídios realizados por governos e grupos paramilitares fizeram acender alarmes pelo mundo civilizado, exigindo-se da comunidade internacional medidas mais concretas para impedir tais atrocidades. Mesmo com a falha do Conselho de Segurança das Nações Unidas em chegar a um consenso, organismos regionais passaram a tomar a dianteira, como no caso da OTAN na Bósnia. A vida humana passou a ser um motivo plausível de intervenção humanitária.
Nenhum estudioso do assunto, frente à carnificina promovida por governos como os de Pol Pot ou Milosevic, considerará que as intervenções foram um ataque à soberania estatal. A expansão das democracias norte-americana e francesa, expostas em suas cartas constitutivas de 1776 e 1789, respectivamente, garante e atesta que a soberania emana do povo. Desde o século XIX, portanto, compreende-se a soberania como pertencendo a determinado povo, e não a determinado monarca ou presidente. O povo, apenas, é soberano. O Brasil seguiu este princípio na sua Constituição de 1988.
São dois os problemas que podem ser observados nesta conduta intervencionista. O primeiro diz respeito ao ente autorizador, ou seja, aquele que dará a palavra final dando “OK” para que mísseis, metralhadoras e morteiros comecem a soar sua sinfonia mortífera. No caso do Iraque e Afeganistão, esse foi puramente unilateral, e a desculpa para sua atuação foram as armas de destruição em massa (que, aliás, nunca foram encontradas) e o acolhimento de grupos terroristas (com quem, aliás, os Estados Unidos acabaram por firmar acordos pós-ocupação).
Buscar um motivo justo para a intervenção não é algo novo. Em 1095, o Papa Urbano II, durante o Concílio de Clermont, reuniria os católicos do mundo para uma cruzada contra os infiéis e a retomada da Terra Santa. Na Era dos Impérios, o escritor Rudyard Kipling pintaria com um tom messiânico-civilizacionista a expansão britânica no sudeste asiático (quem nunca se emocionou ouvindo The Road to Mandalay?) e norte-americana pelas Filipinas (The White Man’s Burden). Até a venda de ópio aos chineses foi “justificada” pelo clamor ao livre mercado.
Não se pretende aqui retirar os motivos justos pelos quais deve um país intervir em outro. Estes motivos acabaram positivados na Carta de São Francisco e não há discussão sobre a sua validade. Se pretende, antes de mais nada, compreender que, a depender do Zeitgeist (“o espírito da época”), os motivos que justificam uma intervenção armada podem mudar.
Desenvolver os Direitos Humanos internamente deve ser um ponto-chave de qualquer governo. Lutar contra o tráfico de drogas e de pessoas, a violência, a fome, condições sanitárias inadequadas e a degradação climática devem permanecer como mola propulsora da sã política. Mas, frente aos imperativos hodiernos, desenvolver as Forças Armadas deve ser uma parte do mesmo programa. A garantia da soberania no século XXI passará, doravante, por esta dupla promoção: cidadania e poder de dissuasão.
Esley Rodrigues
Foi candidato a deputado federal pelo PDT em 2022. É mestre em Estudos Marítimos (Política e Estratégia Marítimas) pelo PPGEM/EGN e doutorando em Ciências Militares (Estudos da Paz e da Guerra) pelo PPGCM/ECEME.