República | Fernanda Buarque
(Publicado na edição #001, p. 45)
Um dos primeiros decretos de revogação das medidas destrutivas do governo de Jair Bolsonaro, o chamado “revogaço”, foi a retirada da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) da lista de estatais a serem privatizadas. Este foi anunciado já no dia da posse do atual presidente Luís Lula da Silva, em 1º de janeiro deste ano. A notícia foi recebida com grande entusiasmo tanto por seus empregados como pelos defensores da comunicação pública no Brasil.
Do início de 2023 até hoje, iniciativas necessárias à transição de gestão da empresa vêm sendo tomadas pelo atual governo. No entanto, uma mudança importante ainda permanece inalterada e tem incomodado trabalhadores e coletivos de comunicação. Trata-se da demora em separar o canal de televisão TV Brasil em veículos distintos que promovam a comunicação pública e a governamental.
Antes de Bolsonaro assumir a presidência em 2019, a EBC era responsável por dois canais de televisão: a TV Brasil, dedicada à comunicação pública, e a TV NBR, relativa à comunicação do governo. Por meio de decreto, estas TVs foram unificadas e o resultado foi em linhas gerais uma programação que apresentava, por exemplo, desenhos infantis educativos interrompidos por discursos do presidente Bolsonaro. É, portanto, compreensível a existência de uma cobrança para que haja novamente a divisão destes canais de TV.
Para que se compreendam as diferenças principais entre comunicações pública, governamental e privada vale voltarmos algumas décadas na história da televisão no Brasil. Em 15 de março de 1994, o apresentador Cid Moreira leu uma carta do ex-governador Leonel Brizola, durante o Jornal Nacional, no episódio que ficou conhecido como o “direito de resposta à TV Globo”. Este episódio revela o quanto os meios de comunicação são capazes de destruir reputações de figuras públicas como esta liderança política. Felizmente, neste caso, o falecido governador pôde responder com um texto brilhante, típico de seu talento de exímio orador, defendendo-se das inverdades atribuídas às suas realizações no estado do Rio de Janeiro. A campanha sistemática contra o Sambódromo, construído na sua primeira gestão, e hoje uma construção de importância inconteste para a projeção do Carnaval carioca e da cultura brasileira, foi apenas um exemplo das desonestas matérias veiculadas pela Rede Globo contra Brizola.
Duas décadas mais tarde, o ex-presidente Luís Inácio da Silva, outra liderança do campo popular, também foi vítima de campanha sistemática contra seu nome e de seu partido. Campanha esta que contribuiu para o impeachment de sua sucessora, Dilma Rousseff, em 2016, bem como sua prisão, em 2018. Mais uma vez a Rede Globo teve papel central, junto com outras emissoras de TV, de rádio e jornais, influenciando a audiência quanto aos supostos crimes cometidos pelos dois ex-presidentes.
Já em 2021, após várias ameaças de extinção e desmonte da Empresa Brasil de Comunicação, a EBC foi incluída no Plano de Desestatização Nacional, que visava privatizar todas as empresas, como a Eletrobras. Criada em 2008, com o objetivo de promover a comunicação pública, a EBC absorveu a Radiobrás — tendo sido esta fundada em 1976, e dedicada à comunicação governamental — , além de veículos como a Rádio MEC e as Televisões Educativas do Maranhão e do Rio de Janeiro, então administrada pela Organização Social Associação de Comunicação Roquette Pinto.
Apesar de ter sido idealizada e instituída pela gestão petista visando atender a uma premissa constitucional, a empresa foi frequentemente utilizada de modo pouco claro quanto às diferentes funções das modalidades estatal e pública. Quando se iniciou o processo midiático de desconstrução das figuras do PT, também as empresas estatais, particularmente a EBC, sofreram com a associação a supostas práticas de corrupção e de beneficiamento do funcionalismo público.
Além disso, embora a empresa conte com vários veículos de comunicação, duas televisões, oito rádios, dois sites de notícias, muitos a associam apenas à TV Brasil. Esta ganhou, aliás, o apelido pejorativo de “TV Lula”, o que aponta para o uso governamental que, muitas vezes, foi feito deste veículo.
Vale ressaltar que o artigo 223 da Constituição Federal prevê a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal. Do ponto de vista da cidadania, a comunicação pública é fundamental para a divulgação de conteúdos de caráter jornalístico, educativo e cultural. Estes não devem se basear em preocupações comerciais, típicas de emissoras privadas, e nem governistas, já que sua finalidade independe das posições políticas de determinados governos.
Por sua vez, a comunicação estatal tem grande relevância pois permite que as realizações e a visão política dos governos vigentes cheguem à população. É necessário que a audiência não seja refém de narrativas impostas pelos veículos comerciais, que, dependendo de seus interesses, podem construir e destruir governantes e demais lideranças políticas.
Diante do quadro político e das premissas constitucionais, é preciso que o campo progressista e, principalmente, os trabalhistas tracem estratégias para o setor da comunicação que garantam de forma eficaz tanto a promoção da comunicação pública, finalidade da EBC, quanto da estatal, finalidade da extinta Radiobrás.
Cabe lembrar que a Rádio Nacional, que existe até hoje, e que foi absorvida pelo sistema EBC, foi vital para a comunicação entre o presidente Getúlio Vargas e os brasileiros. Resguardadas as diferenças dos contextos históricos, é notório verificar o potencial que o veículo representou para a radiodifusão nacional.
Nesse sentido, os trabalhistas devem entender a importância estratégica que um sistema de comunicação como o da EBC representa. Urge que os militantes do trabalhismo avancem na compreensão da defesa e garantia dos preceitos da comunicação presentes em nossa Carta Magna, de forma a assegurar a democracia e propiciar o desenvolvimento nacional.
Fernanda Buarque é jornalista e trabalha na pesquisa e acervo da EBC. Ex-membra da Juventude Socialista, administra os perfis do Mulheres com Ciro.