O legado de Carlos Lessa

Memória | Lucas Alvares

(Publicado na edição #001, junho de 2023, p. 55)

Tive o privilégio de ser amigo do economista Carlos Lessa (1936–2020), o maior pensador do desenvolvimento brasileiro da sua geração. Mais de meio século de vida separavam nossas idades. Mas encontrei, na sensibilidade de quem sabia enxergar a doçura das crianças em portas de escolas e dos cães que passeavam nas ruas, uma alma jovem, embora amargurada com os rumos de nosso país. Nos conhecemos em 2017. Naquele tempo, Lessa se queixava que estava envelhecendo sem conseguir identificar, na Academia e na sociedade civil, quadros que professassem o que ele chamava de “ideologia do desenvolvimento”. Isto é: que pusessem em primeiro plano a natureza urbana da modernidade brasileira para enxergar que a chave para o progresso não está apenas no campo, mas na valorização do homem da cidade, que viu suas oportunidades de trabalho e prosperidade minguarem em três décadas de ciclo neoliberal.

Desgostoso com a hegemonia do liberalismo no pensamento econômico brasileiro e com o aparelhamento de instituições como o Ministério da Fazenda e o Banco Central por autômatos de um mesmo estilo e concepção (como Brizola dizia, “Roberto Campos são muitos”), Lessa começou a pinçar no seio dos programas de pós-graduação do Rio jovens pesquisadores, geralmente mestrandos e doutorandos, com adesão a teses como a defesa intransigente da soberania nacional, a valorização dos direitos sociais, o cultivar da identidade diversa que é a cultura brasileira e o interesse em mergulhar fundo no estudo dos problemas do nosso país. Iniciamos, eu estive desde o início, um ciclo chamado “Intérpretes do Brasil”, em que nos debruçamos sobre os títulos basilares do pensamento social brasileiro: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Raimundo Faoro, Victor Nunes Leal, Caio Prado Júnior, Joaquim Nabuco, José Bonifácio e muitos outros. Dos liberais aos marxianos, passando pelos autores de terceira posição, buscávamos naquelas teorizações respostas para o buraco em que o Brasil estava metido.

Aquelas sessões, que ocupavam nossas tardes na antiga sede da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, capitaneada por Irene, viúva de Darcy, foram o embrião para a fundação do Instituto da Brasilidade, cujas teses e realizações devemos ao norte teórico que Lessa nos ofereceu e à liderança do Prof. Darc Costa, vice-presidente do BNDES quando da gestão de Carlos Lessa no Banco (2003–2004) e um dos principais especialistas em integração latino-americana em nosso continente. Lessa e Darc, amigos, sócios e companheiros de muitas conquistas, se complementavam, cada qual com seu élan. Enfoques teóricos e personalidades distintas, mas uma preciosa amizade, como dois irmãos de vida. Devo muito aos dois. Lessa, mais rebuscado e inventivo, Darc, objetivo e comprometido com os rigores metodológicos. Dois pensadores valorosos da realidade brasileira.

Daquela primeira geração de pesquisadores do Instituto da Brasilidade, destaco pesquisadores como Daniel Kosinski, observador das influências trabalhistas no governo de Juscelino Kubitschek (1956- 1961) e hoje arguto analista do fenômeno das criptomoedas, Patrick Fontaine, atualmente professor de Pensamento Econômico Brasileiro na Universidade Federal de Alfenas, em Minas Gerais, entre diversos outros pesquisadores ali formados, como Raisa Barbosa Dias, Felipe Batista e Marcelo Nicolau.

Todos entramos de cabeça na campanha presidencial de Ciro Gomes, desde os primeiros movimentos de pré-candidatura, em 2017. Lessa enxergava na candidatura de Ciro uma via de retomada da posição trabalhista na política nacional, e a única capaz de oferecer críticas contundentes ao tripé macroeconômico, que Lessa — dentro e fora do governo — tanto combateu.

Aquela campanha, histórica pela capacidade de unir segmentos nacionalistas da sociedade brasileira outrora inteiramente atomizados, teve a marcante participação de Carlos Lessa em distintos momentos. Recordo-me de três: em fevereiro de 2018, recebemos Ciro na já constituída sede do Instituto da Brasilidade, no Cosme Velho, para apresentar sugestões ao programa de governo e debater a conjuntura brasileira. Estavam lá, irmanados, companheiros do comando nacional do PDT, como Osvaldo Maneschy e Brizola Neto, além dos quadros do IB, capitaneados por Lessa e Darc. Em seguida, em vigoroso evento de pré-campanha, lotamos o auditório da Associação Brasileira de Imprensa, oportunidade em que compuseram a mesa de palestrantes, além de Lessa e Darc, o próprio Ciro e o presidente Carlos Lupi, além do saudoso cineasta Jesus Chediak, à época dirigente da ABI e também companheiro de PDT.

Finalmente, nos incorporamos com fervor à campanha de Ciro, dos comícios de rua até os debates sobre rumos estratégicos. A isso, muito devemos à escuta do presidente e, agora ministro, Lupi, um amigo de primeira hora do Instituto.

Derrotados eleitoralmente, vencemos no campo político. A adesão dos jovens à via trabalhista aumentou a olhos vistos em decorrência da candidatura presidencial de Ciro Gomes em 2018. Lessa, vitimado pela Covid-19 menos de dois anos depois, já não estava sozinho: ao seu lado, caminhavam diversos jovens que serviram e ainda servem como multiplicadores de seu olhar sobre o Brasil e das teses nacional-desenvolvimentistas. Embora naturalmente apartidário, a afinidade entre as teses do Instituto da Brasilidade e do PDT fez com que, cada vez mais, os membros do IB se integrassem ao partido. E, hoje, componham espaços privilegiados na discussão temática dos ideais do trabalhismo. Só essa edição da Embaúba conta com a participação de três: o já citado Prof. Kosinski, a Profª. Bruna Werneck e eu. Carlos Lessa, vivo em cada um de nós, cumpriu sua última missão com vigor: plantou as sementes de um novo Brasil, um Brasil brasileiro, senhor de seu destino e promotor do desenvolvimento econômico com justiça social. Nossa profissão de vida, e a materialização de seu legado.

Lucas Alvares é mestre e doutor em Memória Social pela Unirio, jornalista, radialista, pesquisador e professor universitário. É, também, diretor cultural do Instituto de Brasilidade e secretário de Formação e Capacitação da FLB-AP/RJ.

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