Futuro | Okinga
(Publicado na edição #001, p. 17)
“Aquilo que será, com a parte de imprevisibilidade que se liga a tudo o que ainda não se realizou” — assim o Dictionnaire de Philosophie define ‘futuro’. Ater-se à palavra ‘imprevisibilidade’ para entender o presente no qual estamos inseridos é de suma importância. Com efeito, percebe-se que, no meio da humanidade organizada em sociedades civil, militar ou secreta, não há imprevisibilidade, mas sim programação. Assim, o ilustre antropólogo, educador, romancista de Montes Claros e militante do Partido Democrático Trabalhista, Darcy Ribeiro, já nos alertava em relação à crise da Educação no Brasil, quando, numa palestra que ele denominou “Sobre o Óbvio”, em 1977, num congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, proferiu a famosa frase: “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”.
Antes dele, Paulo Freire nos agraciou com o seu livro “Educação e Mudança”, no qual demonstra que o ato pedagógico e o ato político são inseparáveis, mas não se confundem. Como ato político, a educação, principalmente a brasileira, sempre esteve sob domínio das classes dominantes. São elas que fomentam a crise da educação como projeto. Mesmo a educação sendo essencialmente um ato de conhecimento e de conscientização, não pode, por si só, levar uma sociedade a se libertar da opressão imposta por essas classes dominantes.
Bem antes deles, Marx e Engels já pressupunham que o mundo é “um produto histórico, o resultado da atividade de várias gerações […], transformando a ordem social conforme as novas necessidades”. É sobre esse “produto histórico”, esse “resultado da atividade de várias gerações”, que colocamos primeiramente nossos holofotes. Olhemos para o Brasil: na educação, qual o produto histórico, o resultado da atividade de várias gerações que temos hoje? A resposta a essa pergunta denuncia, sem tergiversação, a consequência da lei imperial da Educação nº 1, de 1837 — isto é: a desigualdade social e racial. Uma consequência que Gaudêncio Frigotto revela quando ensina que a educação tem um papel fundamental para a evolução do capitalismo, pois promove desigualdades entre as nações e grupos sociais.
Daí a importância da educação pública, universal e gratuita defendida e principiada pelo professor Anísio Teixeira; defendida também por Darcy que, além de lutar por uma escola pública, idealizou e realizou a educação integral no Estado do Rio de Janeiro, junto do governador Leonel Brizola, através dos CIEPs. Vale destacar o mérito de uma educação universal, gratuita e integral como meio para uma formação crítica, moral, artística, cívica e inclusiva (com respeito às diferenças, estabelecimento de representatividades, participação ativa no devir da escola).
É exatamente esse arcabouço educacional que as classes dominantes elegeram como inimigo. Em seu livro O Projeto Lemann e a Educação Brasileira, Bruna Werneck Canabrava revela as classes dominantes na educação brasileira: conglomerados educacionais e bancos de investimento. Essas classes e os defensores da educação privada alegam o princípio da livre iniciativa para se oporem a um projeto de educação vindo do Estado. Trilhando um caminho diametralmente oposto ao de Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro, os denunciados dominadores possuem uma visão economicista da educação a ponto de, na prática, quererem inviabilizar qualquer outro projeto pedagógico.
Entende-se que a imprevisibilidade ligada ao futuro, ou sua incerteza, é nada mais, nada menos do que um projeto, uma programação dos interesses individualistas e somíticos das classes dominantes.
Retomemos o que foi dito quando citamos Marx e Engels: o mundo transforma a ordem social conforme as novas necessidades. Ou seja, o mundo está em constante evolução, o que impacta diretamente a sociedade contemporânea. A primeira Revolução Industrial nos levou à produção de grande escala em que os modelos agrícola e artesanal deram lugar ao uso de máquinas, ou seja, ao modelo industrial. A segunda revolução nos trouxe, além do progresso dos meios de transporte e comunicação, o desenvolvimento das indústrias química, elétrica, petrolífera e siderúrgica; essa foi a era da energia elétrica, do avião, do navio, do aço, da refrigeração mecânica e do telefone. A Terceira Revolução nos levou à dimensão digital, o uso de microcomputadores e da internet; a robótica se estabeleceu e houve o surgimento das energias nuclear, solar e eólica, além da introdução da engenharia genética, da biotecnologia e o advento do telefone móvel.
A Quarta Revolução, Revolução 4.0, compila todas as tecnologias disponíveis para gerar conhecimento e produtividade, e isso está transformando o mundo de forma globalizada. Somos a geração 4.0.
As exigências que a Revolução 4.0 está trazendo ao nosso mundo, com mudanças exponencialmente ultrarrápidas, foram turbinadas pela pandemia da Covid-19. O relatório do Fórum Econômico Mundial, The Future of Jobs, em 2020, revelou uma tendência de forte transformação no mercado de trabalho. Certamente, a pandemia acelerou a chegada do futuro do trabalho. O que o referido relatório conclui é que se espera um ritmo de adoção da tecnologia permanente e inabalável; a adoção de computação em nuvem; big data e e-commerce continuam a ser prioridades para as grandes empresas; há um aumento significativo no interesse por criptografia, robôs não-humanoides e inteligência artificial.
Uma consequência da automação será a transformação de tarefas, empregos e habilidades até 2025. Por exemplo, 43% dos negócios planejam reduzir sua força de trabalho através da integração tecnológica. Para tanto, até 2025, o tempo gasto para executar as tarefas será igualmente distribuído entre máquinas e trabalhadores humanos.
O cenário, na verdade, demonstra desaceleração da criação de empregos e uma aceleração da destruição de empregos. Estima-se que, até 2025, 85 milhões de empregos poderão ser substituídos por uma mudança na divisão do trabalho entre humanos e máquinas, enquanto 97 milhões de novos cargos podem surgir, mais adaptados à nova divisão do trabalho entre humanos, máquinas e algoritmos.
O relatório aponta para as principais habilidades que terão destaque até 2025. Grupos como: pensamento crítico e análise; resolução de problemas e habilidades de autogerenciamento; aprendizado ativo; resiliência; tolerância ao estresse e flexibilidade. Vê-se claramente que as habilidades necessárias, presumidas para um trabalhador, serão pautadas pela nova realidade, ou melhor, pelos líderes empresariais que, de certo modo, representam a classe dominante deste Mundo 4.0.
O futuro do trabalho chegou para a grande maioria da força de trabalho. Um dado importante citado pelo dito relatório é que 84% dos empregadores estão prontos para digitalizar rapidamente os processos de trabalho, incluindo uma significativa ampliação do teletrabalho (trabalho remoto), que tem o potencial de deslocar 44% da força de trabalho para operar remotamente. Diante desse novo cenário, surgem preocupações quanto às camadas menos abastadas da sociedade, pois, na ausência de políticas positivas, é provável haver maior aprofundamento das desigualdades existentes pelo impacto da tecnologia.
Em vista disso, torna-se imprescindível a necessidade de políticas que garantam investimentos no capital humano, principalmente na capacitação das pessoas para poder desenvolver as habilidades complementares ao uso de robôs e inteligência artificial, procurando formar capacidades em áreas em que a automação não alcança, e em áreas colaborativas entre pessoas e máquinas, ou software, para execução de tarefas exigidas no trabalho.
Obviamente, para suprir o gargalo existente entre as lacunas nas habilidades dos trabalhadores e o nosso Mundo 4.0, não há outro caminho que não seja a educação: a formação continuada dos professores, dos estudantes e dos trabalhadores inseridos no mercado de trabalho, durante toda sua vida profissional. A capacitação das pessoas não está ocorrendo em uma velocidade adequada para suprir as necessidades do Mundo 4.0. Neste contexto, entende-se que a educação precisa se transformar profundamente, acompanhando as novas exigências de adaptabilidade e flexibilidade.
Não será através do tal Novo Ensino Médio que o Brasil alcançará o êxito em sua resposta às mudanças ultra rápidas do mundo do trabalho, mas por intermédio de políticas públicas garantidoras de qualidade e ajustadas para que a educação seja estendida para os trabalhadores e suas empresas.
Outro dado trazido pelo citado relatório é que os empregados estão dando maior ênfase aos cursos de desenvolvimento pessoal, enquanto os desempregados a dão ao aprendizado de habilidades digitais, como análise de dados, ciência da computação e tecnologia da informação. Isso aponta para o rumo que deve trilhar a nova educação.
Pela velocidade das mudanças, a espera de um estudante para seu ingresso no mercado de trabalho é demasiado longa para muitos empregadores. Portanto, a educação continuada e focada no capital humano e social, tanto no setor público, como no privado, tende a ser uma realidade imposta. Não se sabe ainda se isso acontecerá por parcerias público-privadas ou se o setor público forneceria um apoio considerável para a qualificação e requalificação de trabalhadores em situação de risco ou em necessidade.
Para desacelerar o desemprego gerado pela falta de habilidades dos trabalhadores, muitos empregadores esperam que o setor público crie incentivos para investimentos nos mercados e empregos do futuro, forneça redes de segurança sólidas para trabalhadores em necessidade e opere de forma eficaz as melhorias nos sistemas de educação e formação. Por outro lado, certamente, o governo espera implantar políticas no sentido de estimular os empregadores a treinarem seus empregados para suprirem suas próprias necessidades. De todo modo, quer seja por iniciativa pública, quer por iniciativa empresarial, a combinação das necessidades adaptadas às práticas dos negócios complementa o sistema educacional.
É importante destacar o que o CER Sebrae expressa sobre esse provável novo sistema educacional: ele considera que a educação deve ensinar os jovens a encararem os desafios da atualidade, além de estimular o desenvolvimento das competências em crianças e jovens para que possam adquirir capacidade de assumir o protagonismo da própria história. Ou seja, a educação deve “estimular o desenvolvimento de competências para que as crianças e jovens cresçam empoderadas, autoconfiantes e certas de que são capazes de realizar seus sonhos e projetos de vida”.
As mudanças no mundo do trabalho influenciam diretamente a educação e, em via de mão dupla, o futuro do trabalho dependerá também de como a educação será estruturada e aplicada nas instituições públicas e privadas. Aqui situa-se o desafio da educação nas próximas décadas: o de preparar as futuras gerações para as demandas vindouras. Portanto, o Mundo 4.0 exige uma Educação 4.0, com seus currículos escolares e acadêmicos também revolucionados, e seus métodos de ensino transformados.
Aparentemente, a nova educação parece ser uma mescla de diversos métodos de ensino e demandará maior foco nas relações humanas, frisando a necessidade de habilidades interpessoais, preparo dos alunos para um futuro imprevisível ou programado, positividade e resiliência humana, educação com interação, inovação e tecnologia no ensino, e análise crítica.
Resumo esse raciocínio trazendo à reflexão o pensamento do historiador Yuval Noah Harari, que alerta ser impossível ter certeza de como será o mundo do trabalho em 2050. Para ele, a única coisa certa é que muito do que é ensinado nas escolas de hoje será irrelevante daqui a algumas décadas. Tendo a discordar dessa afirmação, pelo simples fato de que tudo que nós aprendemos até hoje nos foi trazido há milênios, como as Matemáticas, a Física, a Biologia e até as bases da metodologia científica. É necessária a ação do ser humano para elaborar o algoritmo e confeccionar a inteligência artificial, com os conhecimentos que acumulamos ao longo da vida.
Com tantas mudanças, não há dúvidas de que a educação dos estudantes e a formação dos trabalhadores precisam se adaptar. Na prática, todos se tornaram estudantes em tempo integral. A educação como é conhecida hoje está passando por uma metamorfose, em que as relações interpessoais através do mundo digital se estabelecem como principal característica. A pesquisa da empresa de educação Pearson, The Global Learner Survey, revela o que pensam pais e estudantes. Essa pesquisa buscou analisar os principais impactos da pandemia de COVID-19 nos processos de aprendizagem do mundo inteiro e de que maneira o acesso à internet reconfigurou o ensino convencional. Os principais achados do estudo estabeleceram o acesso à internet como um direito social básico; o ensino virtual/híbrido ou aprendizado online como realidade permanente na nova educação; e que o sistema educacional precisa disciplinar os estudantes para os novos requisitos do mercado.
Em suma, este momento de transição pode nos ajudar a reescrever o futuro da educação, tornando-a muito mais acessível e igualitária, independentemente da imprevisibilidade atrelada a esse futuro. Contudo, o que está claro é que os pais e alunos, os empregadores e educadores estão agora inseridos intimamente na nova educação. Por isso, hoje, para enfrentar os grandes desafios deslocados pela mudança no trabalho, os governos devem buscar uma abordagem holística, políticas públicas positivas, além de criar vínculos consistentes entre professores, empregadores, trabalhadores, e garantir uma parceria público-privada, nos termos da lei, entre os governos e o setor privado do mercado de trabalho.
Vale aqui citar mais uma vez Darcy Ribeiro, que foi defensor também da educação à distância — a qual ele denominava “minha universidade do ar” –, como uma forma de democratizar o acesso às universidades. Assim, vemos que a era atual, vaticinada por Darcy, pode ser, sim, um caminho para a democratização da educação.
Com tantas mudanças no mundo do trabalho, precisamos de um Trabalhismo forte e protagonista, capaz de defender os interesses dos trabalhadores que, hoje, já estão compartilhando seus empregos com robôs.
Anicet Okinga
É militante do Movimento Negro do PDT, farmacêutico, doutor em Fisiopatologia Clínica e Experimental, e servidor do Instituto Nacional da Propriedade Industrial