Ciro Gomes, o PDT e a Encruzilhada Trabalhista

Arison Fernandes

Nas últimas semanas nos deparamos com especulações sobre possível saída de Ciro Gomes do PDT e sua ida ao PSDB. Fugindo de chavões e análises fáceis e superficiais, faremos uma avaliação política sobre os rumores desta movimentação.

Diante da situação do nosso partido, do Brasil e do mundo, nos cabe debater com franqueza e procurar investigar quais as razões internas de mais uma cisão, o real significado político-histórico que isto terá para as fileiras trabalhistas e as implicações para o projeto de Ciro e do PDT.

Para começar, falemos da relação Ciro-PDT. Para além do que já sabemos da vida partidária de Ciro, pensamos que o cerne do debate não está na aparente volatilidade da sua relação com as agremiações — mas, sim, na concepção que demonstra ter de organização e orientação partidária.

Ciro não chegou ao PDT para disputar o partido e organizá-lo de modo que a linha programática centralizasse os demais organismos e movimentos como uma bússola a orientar um único caminho. O que podemos observar nos últimos anos, especialmente da janela criada em 2018, até o presente momento, foi justamente o oposto. Sabemos que não dependia, como ainda não depende, única e exclusivamente da vontade individual de Ciro.

O PDT já era um partido pronto, com seus acúmulos históricos — positivos e negativos — quando ele ingressou. Já havia expressões da luta de classes e interesses e sinais da crise da social-democracia na condução do trabalhismo, que aprofundou-se ao longo desses últimos anos. Entretanto, a eleição de 18 abriu uma janela de oportunidade única. Havia ali uma militância, mesmo que dispersa, disposta a disputar, pelas bases, o PDT.

Aquele seria o momento para o acirramento da disputa interna, para expor e debater uma reorganização necessária ao partido. Mas a ausência de um projeto definido de partido resultou em uma desconexão das bases com as direções e com o próprio Ciro.

O PDT, mesmo antes de Ciro, se organiza como uma grande federação de micro partidos. Ao contrário do que expressa seu estatuto, o centralismo é meramente formal. Na prática, a condução programática do PDT se caracteriza pelos interesses regionalizados de cada presidente estadual. Essa fragmentação impede uma “guerra de posição” efetiva, como teorizava Gramsci.

Enquanto o PT, por exemplo, construiu aparelhos culturais (sindicatos, imprensa, escolas de formação) para consolidar hegemonia, o PDT manteve-se refém de caciques regionais, incapaz de disputar a sociedade civil além das eleições. Na ausência de um centralismo democrático — no sentido leninista, o partido nunca exigiu que suas direções estaduais subordinassem interesses locais ao programa nacional. Esta falha, Ciro também não corrigiu por não priorizar a disputa orgânica.

E Ciro foi alvo fácil dessa estrutura fragmentada, justamente pela ausência de uma estratégia clara de disputa orgânica. Vale frisar que não subestimamos a inteligência dele, tampouco a de Lupi. Pode ter existido a vontade, o debate, mesmo que cupulista, mas faltou disciplina e resiliência ideológica. Afinal essa disputa poderia gerar baixas eleitorais. O que prova isto é que a nossa organização está refém até hoje deste mesmo mecanismo. E é justamente ele um dificultador para a manutenção de Ciro ou de qualquer grupo ou indivíduo que pense o partido como uma expressão coletiva de um programa.

Isso pode ser observado com facilidade nas eleições presidenciais de 18 e 22, quando vários estados simplesmente ignoraram a orientação nacional e, cada um ao seu modo, a partir do seus interesses, abandonaram Lupi com Ciro candidato. Outra expressão foram as eleições de 2024, no Ceará, e o esfacelamento do partido antes e após a eleição.

Vivemos quase uma esquizofrenia ideológica. Na direção nacional, alguns tentam manter vivos os traços do brizolismo e ainda enxergam em Ciro uma figura que pode representar, com suas particularidades, esta nova etapa do trabalhismo brasileiro.

No entanto, o que impera e determina a vida interna é o pragmatismo mais rasteiro, que vai pela onda do momento e descaracteriza a organização.

O que estamos observando é o PDT cada dia mais próximo das influências ideológicas ligadas à esquerda que optou por administrar o neoliberalismo e todas as suas consequências. E cada dia mais distante da tarefa histórica de reorientar os trabalhadores e o povo para a reconstrução e libertação nacional.

E isto nos coloca diante da relação que temos com o petismo. A reorganização do nosso partido passa necessariamente pela disputa da hegemonia das esquerdas. Um partido do calibre histórico do PDT, se realmente deseja manter-se vivo e com sentido histórico de existência, deve pensar em ter a hegemonia política do nosso campo. Toda estratégia e tática, sejam eleitorais ou não, deve ser baseada nesta disputa.

Afirmo isso analisando a própria história do trabalhismo. Analisando a história, da Revolução de 30 ao golpe de 64 e à redemocratização, vemos que a nossa corrente já foi hegemônica — sendo o principal partido na disputa com o antigo Partidão, o PCB. Naquele período, tínhamos um projeto próprio, uma intelectualidade própria e uma forma singular de ver os problemas e soluções para o Brasil.

Fomos derrotados não apenas pelo imperialismo e pelas elites atrasadas, mas também por um inimigo secundário: o PT, que assumiu a condução do nosso campo. O PT venceu a guerra de posição no campo popular não por ser mais radical, mas por entender que hegemonia exige aparelhos culturais. O PDT, ao contrário, nunca formou quadros para além dos ciclos eleitorais e agora colhe os frutos dessa miopia. Compreender isto significa dizer que num momento inicial a disputa é com o PT.

E eis aqui a questão central para a sobrevivência do trabalhismo como corrente ideológica, para além do seu legado histórico: retomar a hegemonia do campo e reunir condições históricas para liderar uma grande coesão nacional para dar vazão política a esse bloco de classes. O nosso legado tem que se expressar como uma alternativa concreta de futuro para a nação e isto não se dará dentro dos marcos macroeconômicos oferecidos pelos mandatos petistas.

A avaliação da relação com o petismo não pode passar apenas por questões situacionais e de cálculos eleitorais. Temos que ter nossos marcos, nosso projeto, nosso programa, nossa candidatura à presidência. Apresentar isto à sociedade para disputá-la, sobretudo, para além dos períodos de sufrágio, simbolizando uma ruptura política e econômica.

Tomar posição diante deste desafio não significa uma mera rivalidade com o PT. Significa não nos resumirmos a uma corrente ideológica reboquista, sem forma e ideia própria, que só reproduz progressismo difuso. Precisamos de um partido coeso, de um programa nacionalista e de esquerda, com uma estrutura política — de comunicação e formação — e de um projeto eleitoral definido e amplo. Tudo isso sob a nossa direção e que esteja pronto para a luta de classes e a defesa da nação diante dos ataques imperialistas. E isto requer muita disposição política para arcar com todos os bônus e ônus que carregam toda reorganização.

O que finalmente nos leva a avaliar as implicações dessa possível ida de Ciro para o PSDB. Levando em consideração apenas observações superficiais das movimentações do PSDB e posicionamentos de seus líderes, como Aécio Neves, a sigla não dá sinais de guinadas nacionalistas, desenvolvimentistas, keynesianas ou de revisionismo histórico em relação ao papel de Vargas e da intervenção do Estado na economia, por exemplo.

Pelo contrário, em entrevistas recentes, o ex-presidenciável, quando questionado sobre como o PSDB via o Brasil e iria se preparar para o futuro, apresentou a mesma linha liberal e pasteurizada dos problemas da nossa nação. Se Ciro encontrou resistência e pouca aderência no PDT, mesmo com toda identidade que o partido tem com a ideia de projeto nacional de desenvolvimento, Ciro não terá nem resquício de unidade programática no PSDB.

Pelo contrário, os pseudos sociais democratas representam, assim como o PT, o mais puro pensamento uspiano liberal e anti varguista. Ou seja, é um dos partidos da traição nacional.

O que nos leva a crer que esse possível movimento irá apequenar a expressão e o peso ideológico, além da capacidade aglutinadora que tem o PND de Ciro — afinal ele estará no partido das privatizações. Ele carregará, mesmo falando e fazendo diferente, todo estigma que o partido tem. E se continuarmos a digressão podemos chegar a conclusão, infelizmente, que Ciro, indo ao PSDB, estará rebaixando suas bandeiras para voltar-se à disputa regional.

No primeiro momento isso soa interessante eleitoralmente para Ciro, principalmente porque um bom mandato de governador, caso seja candidato, o recolocaria com mais força e memória eleitoral na prateleira dos presidenciáveis. Contudo, ele irá reforçar a lógica que o tanto prejudicou. Sabemos da dificuldade da disputa partidária e eleitoral, não iremos romantizar ou crucificar, mas se faz necessário uma avaliação dos significados e dos possíveis resultados.

Eis onde Ciro e o PDT chegaram: em uma encruzilhada. Cabe a ambos refletirem sobre a importância e o papel de um partido. O PDT, mesmo com problemas, é uma coletividade e sua corrente é uma “ideia força” — a qual atravessou praticamente os últimos cem anos da história brasileira. Isso é maior que as vontades individuais. Já Ciro, como indivíduo, se nos cabe a audácia da sugestão, vale refletir sobre as consequências da falta de um partido ideológico que absorva e acrescente ao projeto que ele representa.

Diante disto, convocamos uma reflexão coletiva sobre a reorganização e reposicionamento político do PDT. De forma que consigamos, sem sectarismos e infantilismos verborrágicos de esquerda, uma verdadeira unidade de ação.

E acreditamos que Ciro é uma das figuras fundamentais neste processo.

Texto publicado originalmente no portal Disparada e reproduzido com autorização do autor

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