Christian Velloso Kuhn – Doutor em Economia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Nos becos cinzentos e ruas enfumaçadas de Birmingham, no final dos anos 1960, surgiu um som que mudaria para sempre a história da música: o heavy metal. Enquanto o mundo cantava sobre paz e amor, o Black Sabbath foi criado por quatro jovens operários — Ozzy Osbourne (vocalista), Tony Iommi (guitarrista), Geezer Butler (baixista) e Bill Ward (baterista) — que nasceu em meio a um cenário de crise industrial, frustração social e promessas políticas não cumpridas. E, por mais que não carregasse uma bandeira partidária, sua música era uma resposta visceral à falência do sonho trabalhista britânico.
Durante o século XX, Birmingham foi chamada de “a oficina do mundo”, graças à força de sua indústria metalúrgica e manufatureira. Era uma cidade de trabalhadores, com bairros como Aston — lar dos membros do Sabbath — cheios de fábricas, poeira, fumaça e poucos horizontes, que se tornou um bairro operário pobre e violento. No entanto, ao fim dos anos 1960, o brilho industrial começava a enferrujar. Fábricas fechavam, o desemprego crescia, as condições de trabalho eram perigosas, e a juventude via diante de si um futuro sem promessas. A cidade afundava em desalento, poluição e desânimo.
Foi nesse ambiente que Tony Iommi perdeu a ponta de dois dedos em uma prensa industrial, em seu último dia de trabalho numa fábrica. Ozzy Osbourne, era filho de um trabalhador e de uma auxiliar de fábrica. Sem perspectivas, foi preso por roubo de um aparelho de TV e passou a juventude entre pequenos trabalhos e a miséria. Bill Ward, também vindo da classe trabalhadora, começou a tocar em bandas de blues e jazz, mas viveu os mesmos desafios econômicos e emocionais dos colegas.
A cidade não oferecia futuro. Só trabalho duro, fumaça e tédio. Birmingham, que deveria ser símbolo da prosperidade trabalhista, se tornava uma prisão sem grades — um cenário perfeito para a invenção de um som sombrio, pesado e distorcido, que parecia traduzir tudo aquilo.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os sucessivos governos do Partido Trabalhista britânico (especialmente o de Clement Attlee, 1945–1951) tinham construído o chamado Estado de Bem-Estar Social (Welfare State). Saúde pública gratuita, educação universal, moradia subsidiada — tudo isso fazia parte do pacote de reconstrução nacional. Na década de 1960, sob governos como o de Harold Wilson (1964–1970), o Partido Trabalhista ainda buscava representar os trabalhadores e modernizar a economia industrial. Para muitos, especialmente nas grandes cidades industriais, o Trabalhismo era sinônimo de esperança. Em teoria, os trabalhadores estavam sendo cuidados.
Mas, na prática, essa esperança não chegava à juventude operária como prometido. O acesso à saúde e à escola não era suficiente para combater a alienação, o tédio e a falta de oportunidades. O trabalho nas fábricas era repetitivo, perigoso e sem sentido. A política parecia distante e alienada. Os sindicatos eram fortes, mas não falavam a língua da nova geração. A robotização e a terceirização já ameaçavam os empregos industriais. Os governos trabalhistas prometeram modernizar a indústria britânica, mas isso muitas vezes não chegou às cidades como Birmingham. O mundo prometido pelo Trabalhismo não dialogava com quem crescia entre fumaça e concreto. Havia um abismo entre os valores tradicionais da classe trabalhadora (disciplina, trabalho, patriotismo) e a revolta da juventude que buscava novas formas de expressão — como o rock pesado.
E assim, ao invés de discursos, surgiu um som. O som da desesperança: o Black Sabbath. A música do Black Sabbath não era alegre, nem otimista. Ela não falava de paz e amor, como os hippies. Suas letras tratavam de medo, guerra, loucura, alienação, apatia espiritual e horrores do cotidiano. Seu som era pesado como o aço, lento como o turno de uma fábrica, denso como o ar poluído da cidade. Eles falavam da realidade dos jovens operários britânicos: do medo da guerra, da religião como opressão, da mente à beira do colapso.
Tony Iommi, ao adaptar sua guitarra por causa do acidente, afinou-a em tons mais graves — criando o som metálico e ameaçador que virou assinatura do gênero. Geezer Butler, influenciado por leituras de ocultismo e crítica social, escreveu letras que expunham a hipocrisia da guerra, da religião e dos poderosos, temas que refletiam o medo e a alienação da juventude da época. Ozzy Osbourne cantava como quem gritava por socorro. Sua voz aguda e perturbada se encaixava perfeitamente com a atmosfera sombria das músicas — como em “Black Sabbath” e “Paranoid” — dando um rosto humano ao desespero urbano.
Tudo isso vinha de um lugar real: a frustração de uma juventude trabalhadora deixada à margem, mesmo em um país que se dizia construído para o bem-estar de todos. Muitos jovens cresceram sob o medo da Guerra Fria, da bomba nuclear, das guerras do Vietnã e das tensões políticas — temas recorrentes nas letras de Geezer Butler. O disco War Pigs critica diretamente a elite política e militar — incluindo os líderes dos partidos que falavam em nome do povo, mas serviam aos interesses da guerra e da elite. Isso mostra uma visão crítica do próprio Trabalhismo, que prometia paz e justiça, mas agia de forma ambígua. Embora progressista, esse não rompeu com o imperialismo britânico nem com o apoio aos EUA em questões militares.
O Black Sabbath nunca foi uma banda de militância política. Não fizeram canções de protesto no estilo tradicional. Mas suas músicas, até hoje, ecoam uma crítica profunda ao fracasso do projeto trabalhista do final dos anos 1960 e início da década de 1970. Mostram o vazio que se instalou quando a promessa de um futuro melhor não se concretizou.
Mais do que um marco musical, o Black Sabbath é um documento cultural de uma geração esquecida. Sua música expressa o ruído interno de quem cresceu entre as ruínas de um ideal, de quem viu o Welfare State falhar em oferecer dignidade e sentido à vida cotidiana. Birmingham foi o berço do metal, mas também foi o túmulo simbólico das promessas do Trabalhismo inglês para muitos jovens da classe operária. E o Sabbath foi a trilha sonora desse funeral.
É possível que o leitor brasileiro consiga fazer um paralelo com o atual cenário político e econômico do país. O governo Lula e o PT também carecem de oferecer melhores condições para a juventude brasileira. Não é à toa que os índices de evasão chegam a quase 60%[1]. Também apresentam alto nível de apatia e alienação (24%) entre 16 e 18 anos, conforme pesquisa da AP Exata[2]. Segundo essa mesma pesquisa, à medida que aumenta a faixa etária, vai se reduzindo o percentual de jovens que se definem de esquerda.
Apesar da recente diminuição dos jovens nem-nem (queda de 6%), ainda persistem desigualdades de gênero e raça nas oportunidades[3]. Isso não interferiu na popularidade do governo Lula entre os eleitores mais jovens (16 a 34 anos), faixa em que apresenta os mais altos índices de reprovação (58%), contra 52% entre eleitores de 35 a 59 anos e 46% entre eleitores com 60 ou mais[4].
O governo lulopetista pouco conseguiu avançar no processo de reindustrialização de nossa economia (o programa Nova Indústria Brasil segue como uma boa carta de intenções), ameaçada recentemente por tarifas impraticáveis de Trump. Segue submetido à prática de um fiscalismo austero, conjugado com uma política monetária de juros estratosféricos. Não há uma política de país de longo prazo. Assim como nunca houve nos governos que lhe antecederam desde a redemocratização do país.
Nesse contexto, um Projeto Nacional de Desenvolvimento (PND) vem se tornando cada vez mais premente. Todavia, o Trabalhismo, que seria a ideologia e cultura política mais coerente com um projeto dessa envergadura, carece de lideranças partidárias com visão e objetivos congruentes com a daqueles que nos antecederam e fizeram desse país uma potência em desenvolvimento. São facilmente cooptados por cargos governamentais e demonstram incapacidade crítica de perceber que o Brasil está sem rumo.
Quem sabe seja preciso surgir um Novo Trabalhismo, mais aderente aos problemas atuais, mas sem perder as diretrizes perseguidas pelos nossos antepassados. Dificilmente surgirá nas estruturas arcaicas, fisiológicas e eleitoreiras dos atuais partidos políticos que se dizem “guardiões” dessa ideologia. Suas lideranças agem mais tais quais guardas de museus ou administradores de massas falidas. O legado trabalhista se vê ameaçado. Por isso, far-se-á necessário consolidar um novo movimento. É preciso surgir um Trabalhismo “Sabbathico”, com a rebeldia do metal e ideias e discursos que tragam esperanças e tirem da apatia a juventude brasileira, assim como o Black Sabbath fez durante os seus 45 anos de existência.
Texto publicado originalmente no Portal Disparada e reproduzido com autorização do autor
Referências:
[1] https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/ensino-superior/2024/05/6852929-ensino-superior-no-brasil-tem-57-de-evasao-na-rede-publica-e-privada.html
[2] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/jovem-brasileiro-deixa-a-esquerda-conforme-envelhece-aponta-pesquisa/
[3] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/01/08/diminui-numero-jovens-nem-nem-brasil.htm
[4] https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/07/16/quaest-julho-veja-aprovacao-e-reprovacao-de-lula-por-regiao-genero-idade-estudo-renda-religiao-e-raca.ghtml#4