Mercado de trabalho aquecido, porém, precarizado – parte 2

Nelson Marconi – Professor adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV EAESP) e coordenador do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimento

Em meu último artigo para a Conjuntura Econômica, discuti o cenário do mercado de trabalho e demonstrei que grande parte das vagas criadas entre 2012 e 2024 no setor privado está relacionada a setores e ocupações que pagam salários relativos menores. Neste texto, tratarei de características adicionais que fornecem novas pistas sobre a qualidade dos postos que vêm
sendo gerados, além de sugerir soluções para os sinais de precarização que vêm sendo identificados.

Os dados levantados permitem reforçar a diversidade entre as características das ocupações nos diversos setores. Além disso, mostram que existe uma correlação entre o salário relativo setorial e as características das ocupações, principalmente no tocante ao nível de escolaridade requerido, ao regime contratual e à rotatividade (mensurada por uma proxy, o tempo de serviço na ocupação atual).

Vamos analisar inicialmente as características dos postos de trabalho em que foram observadas as
maiores variações, positivas ou negativas, ao longo do período considerado (2012-2024). O foco será
o setor privado, por responder a quase 90% do mercado de trabalho e registrar, segundo levantamento anterior, alguns indícios de precarização. Foram incluídos na análise os mesmos grupos de combinações
entre setores produtivos e ocupações selecionados no artigo anterior. Trago algumas informações previamente levantadas para a análise – a variação no total de ocupados e o salário relativo setorial (corresponde ao salário médio calculado para a combinação setor/ocupação dividido pelo salário médio geral), e acrescento novos dados relativos à composição da força de trabalho e às condições para realização das atividades laborais (regime contratual, rotatividade e horas trabalhadas).

As tabelas 1 e 2 incluem esses dados, que se restringem a 2024 por limitação de espaço.

O primeiro indicador analisado refere-se à escolaridade. Nos setores/ocupações em que foram criadas mais vagas entre 2012 e 2024, nota-se um predomínio de trabalhadores que não possuem escolaridade de nível superior. Certamente esse perfil reflete uma característica mais abrangente de nossa sociedade, mas de toda forma implica menor produtividade e salários menos atrativos. Nota-se que boa parte dos
ocupados possui nível médio de escolaridade; logo, ainda que aumentar a participação de ocupações de
nível superior deva ser um objetivo crucial de nossa sociedade, a melhoria do acesso e da qualidade e a
redução da evasão no ensino médio também contribuiriam para elevar a produtividade em nossa economia, dada a prevalência de vagas preenchidas por trabalhadores com esse nível de habilidades. Quanto à participação de cada gênero neste grupo de setores/ocupações, não se observa uma tendência predominante (os resultados são muito diversos), e em relação à raça nota-se uma participação bem menor de pretos, pardos e indígenas nas posições que demandam escolaridade de nível superior, refletindo um déficit estrutural de nossa sociedade.

Outros indicadores que reforçam a possibilidade de precarização do mercado de trabalho estão relacionados às formas de vínculo contratual e rotatividade. Dentre algumas combinações entre setores e ocupações que apresentaram um incremento maior do número de vagas, observa-se um percentual elevado de vínculos informais. Entre as que registram salários relativos menores, também há uma predominância de informais (a correlação não é tão elevada, neste caso, porque para algumas posições em que se observa um salário relativo baixo, mas ligeiramente superior ao do estrato inferior da distribuição, predominam vínculos formais).

Os chamados pejotizados – trabalhadores por conta própria com CNPJ – são relevantes em atividades que demandam escolaridade de nível superior e em alguns serviços pessoais. São trabalhadores que abdicam – ou perdem – o acesso a direitos sociais e, no caso específico daqueles que ofertam serviços pessoais, cujas remunerações são menores, poderão ser prejudicados, a médio prazo, dada sua reduzida capacidade de geração de renda futura. Outro importante sinal de flexibilização na direção da precarização é a correlação entre o salário relativo e o tempo de serviço no trabalho atual; as posições com menores salários são aquelas em que predominam posições ocupadas mais recentemente, sugerindo que há uma rotatividade maior para essas posições. O percentual de temporários é maior em combinações entre setores e ocupações nas quais são praticadas baixas remunerações, ainda que, em geral, esta não seja uma regra disseminada. Não há uma tendência clara em relação ao número de horas trabalhadas.

Assim, para o grupo de ocupações analisado, há uma presença relevante de trabalhadores com escolaridade de nível médio, bem como é possível observar a predominância de regimes de trabalho informais para diversas dessas atividades, principalmente naquelas em que se observa menor remuneração relativa, e vínculos de trabalho mais curtos. Algumas dessas características são típicas de um movimento de precarização das condições de trabalho.

E o que pode melhorar este quadro? Além, logicamente, do investimento em educação, a mudança na
estrutura produtiva na direção de setores que gerem melhores empregos pode ajudar decisivamente a mudar este cenário. Os quadros a seguir (tabelas 3 e 4) demonstram as diferenças entre as características do mercado de trabalho em cada setor produtivo (ordenados segundo a classificação por
salário relativo do setor em 2024). Nota-se que a heterogeneidade é significativa, demonstrando que a composição da estrutura produtiva de uma economia é relevante para a melhoria da qualidade das ocupações.

Há diferença relevante no perfil de escolaridade dos trabalhadores entre os diversos setores. Naqueles em que o salário relativo é maior, predomina uma participação também mais elevada de pessoas com
escolaridade de nível superior. Novamente, não é possível detectar uma tendência clara em relação à
predominância de pessoas do sexo feminino, porém é evidente a menor participação de pretos, pardos
e indígenas nos grupos de setores em que se observam os maiores salários, reforçando um aspecto anteriormente apontado.

Em relação às condições de trabalho, nota-se que, com poucas exceções, os setores que praticam
menores remunerações tendem a possuir um contingente proporcionalmente maior de trabalhadores
informais, e o inverso vale para as mais bem remuneradas, ainda que no miolo da distribuição salarial não haja uma tendência clara. Nota-se também que os ocupados nos setores que praticam menores remunerações encontram-se, em média, há menos tempo em suas atuais atividades, mostrando inclusive que a rotatividade é diferente para os diversos setores. Os contratos com pessoas jurídicas concentram-se em serviços pessoais e naqueles que demandam formação em nível superior, conforme já afirmado. É também surpreendente o percentual de temporários no serviço público, superior à de qualquer outro setor, o que requer posterior análise específica. O número de horas trabalhadas é ligeiramente superior nos setores que remuneram melhor, conforme esperado.

Assim, fragilidades do mercado de trabalho, que indicam sinais de precarização e foram observadas nas
combinações entre setores e ocupações que mais cresceram nos últimos anos, podem ser revertidas se os setores que praticam melhores remunerações aumentarem sua participação no valor adicionado de nossa economia porque, além da questão salarial, eles oferecem, em geral, vagas mais qualificadas e com melhores condições de trabalho. Serviços modernos e empresariais (intensivos em tecnologia
e conhecimento), infraestrutura e a manufatura de média e alta tecnologia são setores que, se elevarem sua participação na economia, mudarão as características de nosso mercado de trabalho e contribuirão para um crescimento mais equânime e a melhoria do bem-estar.

O investimento em educação sempre será uma condição necessária para a melhoria da estrutura ocupacional de uma economia, mas é insuficiente se não houver uma demanda por força de trabalho mais qualificada e organizações ofertando melhores condições de trabalho, características estas que
variam consideravelmente conforme o setor contratante. Esta deve ser uma questão central para
qualquer estratégia de desenvolvimento econômico e social.

Este texto foi reproduzido com consentimento do autor – Nota do editor

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