Mercado de trabalho aquecido, porém, precarizado

Nelson Marconi – Professor adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV EAESP) e coordenador do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimento

O mercado de trabalho vem mudando muito nas últimas décadas ao redor do mundo, e o Brasil não foge à regra. Transformações em regimes de contratação e vínculos empregatícios, jornadas e direitos trabalhistas são frequentes; mas também são marcantes as alterações nas atividades e ocupações demandadas, bem como nas respectivas remunerações praticadas ao longo do tempo. Aproveitando a divulgação dos microdados da PNAD para o ano completo de 2024, vou comparar as características de empregos e salários no país em dois momentos distantes, 2012 e 2024.

A comparação é válida porque são dois períodos em que a taxa de desemprego foi consideravelmente baixa – 7,4%, em média, em 2012, e 6,9%, em média, em 2024. Possibilitando, dessa forma, avaliar se o atual crescimento das ocupações ocorreu com características semelhantes ou distintas das observadas em cenário parecido em 2012. Os dados mostram que o crescimento atual mostra maior polarização e precariedade em termos salariais, o que pode explicar, em parte, o descasamento entre a evolução do mercado de trabalho e do apoio ao governo.

Vamos, então, à análise. A maioria dos estudos sobre mercado de trabalho adota uma abordagem que privilegia as condições de oferta, geralmente associadas ao nível de escolaridade e à qualificação profissional dos trabalhadores. Sem desconsiderar sua importância, sigo uma ótica de análise orientada pela demanda, isso é, buscando identificar quem contrata e para que tipo de ocupação, apontando às habilidades requeridas no mercado de trabalho. Nesse espectro, cabe olhar para o comportamento do emprego e remunerações em setores e ocupações, pois são as atividades realizadas nos diversos setores que demandam ocupações diversas, as quais, por sua vez, também requerem habilidades e, consequentemente, qualificações específicas. Logo, a oferta de habilidades é fundamental, mas sem uma correspondente demanda haverá desemprego mesmo para pessoas com um nível adequado de capital humano acumulado.

O gráfico 1 mostra a diferença entre as remunerações praticadas nos diversos setores. As séries de dados incluídas no gráfico correspondem ao chamado salário relativo setorial. Para calculá-lo, primeiramente foi feito um ajuste no valor dos salários, dividindo-se a remuneração bruta costumeiramente recebida pelo número de horas habitualmente trabalhadas na semana. Posteriormente, foi dividido o salário médio ajustado estimado para o setor pelo salário médio ajustado estimado para o conjunto da economia, resultando assim em um índice do salário médio setorial
relativo. Sua média ponderada (pelo número de ocupações nos diversos setores) é igual a 1. Essa estimativa foi feita para cada um dos trimestres, e o dado incluído no gráfico corresponde à média simples dos resultados encontrados para cada trimestre do
ano analisado.

A explicação para a diferença entre os salários relativos setoriais reside na especificidade das habilidades e ocupações que eles demandam, dado que produzem bens e serviços distintos. Aliás, observando-se os dados por ocupações em cada setor (não incluídos nas tabelas, por questões de espaço), nota-se que os salários relativos para um mesmo grupo de ocupações são distintos nos diversos setores, mostrando que Estes últimos valoram distintamente as habilidades. Essa diferença pode estar associada aos distintos patamares da produtividade média do trabalho (valor adicionado por trabalhador) em cada setor – mas
esse é um tema para outro artigo. Nota-se inclusive que, entre 2012 e 2024, os salários relativos que aumentaram estão nos setores que mais prosperaram nos últimos anos, como finanças, tecnologias e serviços digitais e agropecuária (ainda que, neste último, os patamares salariais permaneçam muito baixos).

Dito isso, na sequência estruturei uma classificação que combina setores e ocupações e possibilita
identificar melhor os destaques das mudanças ocorridas no mercado de trabalho. A classificação resultou em 600 combinações entre 30 grupos de setores e 20 categorias ocupacionais. Para identificar as mudanças relevantes, foram estimadas as variações no número de pessoas ocupadas entre 2012 e 2024, sendo que os resultados trazidos para o texto correspondem à média dos trimestres de cada um dos anos analisados. Foram segregados os trabalhadores do setor público e privado, pois estão associados a mercados de trabalho que operam sob lógicas distintas. As variações mais relevantes, entre essas 600 combinações, estão destacadas nas tabelas 1 e 2. São 27 combinações para o setor privado, que correspondem a 75% da variação do número de ocupados neste grupo no período entre 2012 e 2024, e são nove combinações para o setor público, cujo percentual correspondente atinge 96%. As tabelas também incluem a evolução do salário relativo para as diversas combinações entre setores e grupamentos ocupacionais destacados.

No caso do setor privado, há uma clara concentração das variações do número de pessoas ocupadas em combinações de setores/grupamentos ocupacionais nos extremos da distribuição de habilidades e salários, isso é, nas atividades que requerem elevada qualificação – profissionais de nível superior nos setores de saúde e técnico-científicos – e em grupos que requerem menor qualificação, sem os desmerecer – vendedores do comércio, condutores de veículos (a chamada uberização), serviços pessoais, cuidados pessoais e vendedores de alimentos. Atividades que requerem habilidades medianas (operários qualificados na indústria, técnicos em geral e funcionários administrativos qualificados), com exceção dos técnicos na área de saúde, não apresentaram variação digna de destaque durante o período analisado. Assim, nosso mercado de trabalho do setor privado, a exemplo do que ocorre em outros países, está se tornando polarizado.

Situação distinta pode ser observada no setor público; houve um crescimento das ocupações de alta qualificação e redução em algumas de qualificação menor, que possivelmente foram terceirizadas e, nesse caso, ajudam a explicar o aumento das ocupações elementares e ligadas aos serviços no setor privado; também houve, no entanto, queda em outras ocupações que requerem maior qualificação. O
crescimento do emprego na administração pública concentra-se nas áreas de educação, saúde e segurança, que demandam habilidades medianas ou elevadas para o exercício de suas atividades.

Mas o dado que eu gostaria de frisar nesta análise, e que aponta à precarização que ocorreu no mercado de trabalho do setor privado ao longo do tempo no Brasil, é a concentração do crescimento do emprego em combinações de setores/grupamentos ocupacionais em que se observam salários relativos baixos. Parcela significativa da variação (65%) no número de pessoas ocupadas no setor privado deu-se em combinações que praticam salários relativos baixos; e nota-se também uma redução
razoável dos salários relativos mais altos, nas combinações que os praticam, ao longo do período considerado. Assim, além de observarmos um aumento maior na contratação de pessoas naquelas atividades que praticam salários relativos inferiores, houve uma diminuição do salário relativo daqueles que recebem as maiores remunerações. Em relação à primeira constatação, entendo que esse comportamento está associado à reduzida participação de setores mais dinâmicos na estrutura produtiva do país; em relação à segunda constatação, possíveis explicações residem na expansão da oferta de trabalhadores com escolaridade de nível superior, bem como na flexibilização das relações de trabalho e na chamada pejotização, mas esse será tema de análise de outro artigo específico.

Já no mercado de trabalho do setor público, o quadro é diferente. A variação se concentrou entre as
combinações de setores/grupamentos ocupacionais que praticam os maiores salários relativos (59%) e
não há uma tendência clara para os salários relativos nas combinações que demandam maior qualificação. De toda forma, é importante que, como princípio, tal mercado de trabalho não siga a precarização observada no privado.

Para reforçar a importância dos dados destacados acima, estruturei dois gráficos com a distribuição dos salários relativos vis-à-vis a variação no número de pessoas ocupadas em cada combinação de setor/categoria ocupacional destacada nos setores público e privado e incluídas nas tabelas 1 e 2. A situação ideal, que refletiria um mercado de trabalho crescendo em sintonia com o processo de desenvolvimento econômico, consistiria naquela em que fosse observado um número maior de combinações setor/ocupação no quadrante direito superior (crescimento positivo do número de ocupações em combinações que praticam os maiores salários relativos) e no quadrante esquerdo inferior (redução do número de ocupações em combinações que praticam os menores salários relativos).

O gráfico 2, relativo ao setor privado, mostra uma concentração de combinações no quadrante esquerdo superior – aumento do número de pessoas ocupadas nos setores que praticam salários relativos menores que um. Em relação ao setor público (gráfico 3), o quadro é mais equilibrado, reforçando assim o seu papel estabilizador. As tabelas de correspondência entre os códigos adotados nos gráficos e as denominações das combinações entre setores e ocupações encontram-se ao final do texto.

Concluindo, o mercado de trabalho encontra-se tão aquecido quanto em 2012, mas com características mais precárias. Os empregos criados são de menor qualidade, considerando como critério de análise o salário relativo praticado, e mesmo a remuneração para as ocupações que demandam trabalhadores mais qualificados diminuíram em termos relativos. Talvez esse fato esteja contribuindo para o provável
descolamento entre este cenário de expansão de vagas e a diminuição na popularidade do governo, em função da menor qualidade das vagas geradas e redução da remuneração praticada em algumas atividades que requerem maiores habilidades. A perda de dinamismo do setor produtivo, dada a redução de setores industriais relevantes (vide o salário relativo setorial praticado na indústria de média e alta tecnologia), e a timidez dos investimentos em setores de serviços tecnologicamente mais sofisticados contribuem para esse quadro. Ressalta-se também que outras características do mercado de trabalho, como horas trabalhadas, tipo de vínculo, acesso a benefícios e tempo de permanência no emprego não estão incluídas na análise e são também relevantes. Serão tema de artigo futuro, mesmo porque uma análise mais completa não caberia neste espaço.

Este texto foi reproduzido com consentimento do autor – Nota do editor

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