Gabriel Placce – Engenheiro Civil e de Segurança do Trabalho. Bauruense e filho de ferroviário.
A Malha Oeste foi o primeiro trecho ferroviário concedido à iniciativa privada e será também o primeiro a ter sua concessão leiloada novamente. Nesse contexto, destaco três pontos essenciais para o debate. Primeiro, a tentativa da concessionária, desde 2020, de devolver o trecho à União sem maiores consequências, deixando como legado um patrimônio sucateado
uma prática que expõe a “socialização” dos prejuízos enquanto os lucros permaneceram privados. Segundo, a importância da regulamentação de uma política nacional de transportes, que traga diretrizes claras e estratégicas para o setor. Terceiro, a oportunidade de implementar uma política industrial voltada ao setor ferroviário, que pode ser um marco no desenvolvimento da infraestrutura ferroviária e no fortalecimento econômico do Brasil.
A CRÍTICA.
Em primeiro lugar, é crucial ressaltar que estamos à beira de testemunhar um crime de lesa- pátria com a concessão iniciada em 1996, entregando à operadora uma estrada de ferro, locomotivas, vagões, galpões, pátios e maquinários em boas condições. Surpreendentemente, ninguém está abordando a questão da indenização que a empresa Rumo deveria suportar pela sucata que está retornando à União.
Se alugarmos um imóvel para terceiros, aceitaríamos o imóvel em qualquer estado? No entanto, quando se trata do patrimônio público, parece que poucos se importam. A ferrovia foi construída com o nosso dinheiro, proveniente dos impostos, e é inaceitável que como sociedade não exijamos prestação de contas dos responsáveis.
Caso a operadora realize as devidas manutenções ou providencie a indenização devida, o leilão da concessão da Malha Oeste poderia ser consideravelmente mais vantajoso para o próximo operador. A Procuradoria da União, o Ministério Público e a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) deveriam prestar esclarecimentos sobre essa situação. Devemos questionar se estamos dispostos a aceitar a sucata que a Rumo deseja devolver à sociedade, fora o precedente horrível que isso irá abrir para outras operadoras de concessão não só de ferrovias.
DAS DISCUSSÕES TÉCNICAS.
No estudo preliminar realizado pela ANTT, o ponto que gerou mais discussões é a proposta de trocar a bitola métrica (1,00m) pela bitola larga (1,60m), apresentando vantagens e desvantagens.
Em resumo, a bitola larga é mais apropriada para o transporte de grandes volumes de mercadorias, devido à sua maior capacidade de carga. Enquanto os vagões que operam na métrica possuem uma capacidade de 20 toneladas por eixo, variando de 30 a 60 toneladas por vagão, os da bitola larga possuem capacidade de 32 toneladas por eixo, variando de 60 a 120 toneladas por vagão. Devido à sua maior largura, ela proporciona mais estabilidade, permitindo operações em velocidades mais elevadas, reduzindo o tempo de frete, e possibilita a técnica do ‘Double Stack’, ou seja, o empilhamento duplo de contêineres, algo inviável na
bitola métrica. Na prática, isso resulta em menos vagões circulando, menor consumo energético, redução nos custos operacionais e uma abordagem mais sustentável do ponto de vista ambiental, com menor impacto na mobilidade urbana.
Atualmente, a Malha Oeste utiliza a bitola métrica e, de acordo com os estudos, a transição começaria a partir de 2030, alcançando a capacidade máxima em 2031, sendo um dos pontos criticados na proposta de troca de bitola.
Uma das vantagens da bitola métrica reside em sua construção mais econômica e exigência de menos espaço. No entanto, ao adotar a bitola larga, seria necessário verificar e ajustar diversas estruturas existentes, como edificações, sedes, fiações, guarda-corpos e estruturas de pontes, incluindo passagens superiores, como viadutos rodoviários. Esse fato implica em significativo impacto nas estruturas físicas, aumento na faixa de domínio e no custo do empreendimento, tornando a adaptação da bitola larga mais onerosa e, em certos casos, demandando a necessidade de contornos ferroviários.
Questões relacionadas à metodologia de execução, desapropriações e licenciamento também influenciarão o prazo de início operacional. Vale ressaltar que existe um corredor bioceânico conectando o Oceano Atlântico ao Pacífico, abrindo oportunidades para um escoamento mais eficiente da produção. Uma das malhas ferroviárias mais lucrativa e eficiente no Brasil, é a Vitória-Minas operada pela Vale, utiliza a bitola métrica.
Portanto, a mudança de bitola envolve custos substanciais em investimentos para novas locomotivas, vagões e infraestrutura ferroviária, além de interromper temporariamente a operação da ferrovia. É imperativo realizar um estudo mais aprofundado e promover amplo debate sobre a viabilidade e os impactos envolvidos.
É bastante provável que as empresas interessadas no leilão lutem pela manutenção da bitola métrica, considerando os custos menores e a possibilidade de iniciar a operação mais rapidamente, visando garantir o retorno do investimento no menor tempo possível. Isso, porém, pode não refletir necessariamente o que seria melhor para o país e para a nossa região

DAS CONCESSÕES DE FERROVIAS E O BRASIL.
Das concessões realizadas no passado, uma questão torna-se evidente: a ausência de regulamentação. Deixar a concessão sem regulação direciona inevitavelmente o caminho para a busca do maior lucro, em detrimento do bem comum. As ferrovias devem ser um meio de distribuir ‘dividendos sociais’, ou seja, o Brasil deve colher benefícios a partir de suas estradas de ferro.
É imprescindível estabelecer uma política nacional de transportes. Atualmente, as operadoras transportam apenas o que lhes interessa, focando principalmente em itens de grande volume, como soja, minério, celulose e combustíveis. Em outras palavras, concentram-se apenas em commodities. Urge a necessidade de uma política que assegure à indústria, aos pequenos e médios produtores, a capacidade de transportar produtos de valor agregado através da ferrovia, reduzindo custos de frete e tornando essas empresas mais competitivas.
A substituição da bitola métrica pela larga facilita essa medida, pois viabiliza o transporte de contêineres empilhados, o chamado ‘Double-Stack’, possibilitando o transporte de produtos de valor agregado e alimentos, o que poderia reduzir os custos dos produtos nas prateleiras.
Além da implementação de uma política nacional de transporte, é crucial aproveitar a oportunidade oferecida. Em uma análise superficial, os aproximados 1.600 km da Malha Oeste têm um custo de concessão de 18 bilhões. Dentro dos 25.000 km de concessão total, outras concessões também passarão por novos leilões. Estamos falando, portanto, de investimentos na ordem de duzentos e oitenta bilhões em infraestrutura. Certamente, existem trechos onde a malha ferroviária é excelente e não demandará o mesmo nível de obras, mas os valores serão convertidos em outorga em prol da União. No entanto, é crucial considerar que o valor a ser investido será substancial, e é necessário utilizar isso como alavanca para impulsionar o país e conceber uma política de industrialização. Do contrário, corremos o risco de, como exportadores de minério, importar da China e da Alemanha os novos trilhos, locomotivas, entre outros.
É vital implementar uma política que assegure que tais aquisições sejam realizadas junto à siderúrgica nacional, seja zerando os impostos ou mediante outros tipos de subsídios que tornem nosso produto mais competitivo do que o estrangeiro. Dado o volume expressivo, é imperativo garantir que a geração de empregos ocorra aqui.”
